O mistério dos manuscritos do mar morto

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Estudo revela que os essênios, grupo judaico que despreza os valores da vida mundana e se dedica à caridade, ao qual se atribui a autoria dos pergaminhos que registram o início da era cristã, podem nunca ter existido. 

Uma sociedade ideal, que despreza os valores da vida mundana como o dinheiro e a posse de terras, respeita os idosos, rejeita a escravidão e se dedica à caridade. Assim seriam os essênios, um grupo de judeus cuja origem data de dois séculos antes de Cristo e que desapareceu no ano 70 d.C., quando o general romano Tito liderou o massacre de Jerusalém. 
Antes de serem aniquilados, os essênios teriam dado um passo importante para a preservação da história ao esconderem em potes espalhados por 11 cavernas na região de Qumran, junto ao Mar Morto, no deserto da Judeia, documentos em que teriam relatado práticas, crenças e hábitos do início da era cristã. 
Encontrados entre os anos de 1947 e 1956, os 930 pergaminhos conhecidos como Manuscritos do Mar Morto revelaram, entre outras coisas, os textos bíblicos mais antigos de que se tem notícia. Para muitos, trata-se da maior descoberta arqueológica do século XX. O alicerce dessa história, porém, foi abalado na semana passada pela israelense Rachel Elior, uma professora de misticismo judaico. Depois de passar uma década lendo minuciosamente os pergaminhos, ela concluiu que os essênios nunca existiram: “Eles são uma lenda”, afirma. 
Rachel, que é da Universidade Hebraica de Jerusalém, sustenta a tese argumentando que é de se estranhar que os essênios, uma vez autores dos manuscritos, não façam qualquer referência a si próprios nos textos. “Que eles não sejam os autores não é novidade, muitos especialistas já defendiam isso”, afirma o teólogo Pedro Vasconcellos, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Daí a dizer que nunca existiram é bombástico. Eu me assustei.” Para Paulo Nogueira, que leciona literatura do cristianismo primitivo na Universidade Metodista, em São Bernardo do Campo, São Paulo, a hipótese da existência dos essênios, sob a luz da pesquisa dos manuscritos, é frágil. “Nesse caso, a contra-hipótese de Rachel não é absurda”, diz ele. “Ela radicalizou uma postura, chutou um balde que já estava à beira do abismo.” 
Muito do que se sabe, hoje, sobre os essênios foi escrito por Flavio Josefo, um historiador que viveu no século I d.C. Ele relatou também as trajetórias de saduceus e fariseus, outros dois grupos religiosos que existiram na era cristã no território que hoje é Israel. Segundo Josefo, os cerca de quatro mil essênios viveram em oposição ao mandamento bíblico que exigia o matrimônio e a procriação, não se alimentavam de animais mortos, ficavam imergidos na água a cada manhã e proibiam a expressão da raiva. Práticas que os elevariam à condição de uma sociedade dissidente e esotérica, não fosse sua história uma utopia, como defende a professora Rachel. Para ela, quando se refere aos essênios, Josefo, considerado pelos judeus um dos maiores historiadores da época, estaria exercitando a literatura e não uma descrição histórica. “Não faz sentido haver milhares de pessoas vivendo de forma contrária à lei judaica e não existir qualquer referência a elas em nenhum texto hebraico ou aramaico”, diz a israelense. 
A quem caberia, então, a paternidade dos manuscritos? De acordo com a professora da Universidade de Jerusalém, os escritores se identificam nos textos como sacerdotes filhos do judeu saduceu Zadok, um grupo mais vinculado ao judaísmo oficial de Jerusalém. “É problemático (eles serem os autores) porque os manuscritos revelam manifestações ou tendências não tão alinhadas à ortodoxia daquela época. Portanto, ou são a expressão de uma dissidência judaica ou de um judaísmo multifacetado”, pondera Vasconcellos, da PUC. “No fim das contas, Rachel quis substituir um grupo por outro. Mas a discussão daqui para a frente tem de ser sobre a existência ou não dos essênios.” Esse é o enigma. 
Fonte: Revista Isto É.

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